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domingo, 26 de abril de 2009

ROMANCE DE FORMAÇÃO E EDUCAÇÃO


Bildungsroman: Estudos Preliminares
Ademir de Godoy Bueno

Denominado romance de aprendizagem ou formação, Bildungsroman, em sua terminologia alemã, apresenta-se como um tipo de romance no qual é exposto de forma pormenorizada o processo de desenvolvimento intelectual, físico, moral, psicológico, estético, social e político de uma personagem, geralmente desde um processo incipiente, na infância, até o estágio de maior maturidade.
Esse gênero literário teve seu nascimento formal no século XIX, tendo como primeira obra de referência o romance "Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister" (1796/97) de Goethe e, a partir daí, dando origem a várias obras inspirada pela sua matriz, ao longo do século XIX e XX. Conforme discutido em aula[1], podemos citar James Joyce em "Retrato do Artista Quando Jovem" ou em "A Montanha Mágica" de Thomas Mann, “A nova Heloisa” de Rousseau, entre outros que cultivaram o gênero.
Ainda que existam tentativas embrionárias do Bildungsroman em obras clássicas e medievais, como em novelas de cavalaria, é a partir do Renascimento que ele aparece com certa consistência, através do gênero picaresco. Em "O Lazarilho de Tormes", por exemplo, seguimos as várias fases por que passa o protagonista, de modo a defender-se das contrariedades da sua jovem vida.
A presença dominante do Bildungsroman na literatura alemã oitocentista assume duas tendências fundamentais em sua ficção: por um lado, manifesta a necessidade de expressar o mundo concreto e, por outro, a necessidade de superá-lo. Dessa Tensão entre realidade e necessidade ou real concreto e real alternativo, resulta um caráter híbrido neste tipo de romance que, segundo Mass, o aproxima da utopia enquanto expressão literária.
Bakhtin, no texto “o romance da educação na história do realismo” aborda, entre outros aspectos, a representação literária da formação. Através de um ponto de vista histórico, procura identificar os princípios de estruturação do herói individual no romance de viagem, de provas e biográfico delineando diferenças, fronteiras e influências destes em relação ao romance de formação e relacionando o herói aos temas, as concepções de mundo e a composição romanesca em cada um destes. Nesses apontamentos, Bakhtin ilustra que os romances de viagens, de provas e biográficos abordam sobre uma questão cronotópica que perpassa dessa variante de romances e estabelece uma relação posterior com o romance de formação, em particular, no romance Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe.
Nesta mesma obra, Bakhtin afirma que, por mais divergente que seja a orientação que envolve o tema romance de formação, um ponto de partida, como elemento constitutivo básico do Bildungsroman seria a idéia do romance do herói individual.
Referente ao herói, Mass (2000:62), citando Jakobs, expõe as seguintes características na construção do Bildungsroman:
v O protagonista deve ter consciência mais ou menos explícita de que ele próprio percorre não uma seqüência mais ou menos aleatória de aventuras, mas sim um processo de auto-descobrimento e de orientação do mundo;
v A imagem que o protagonista tem do objetivo de sua história de vida é, em regra, determinada por enganos e avaliações equivocadas, devendo ser corrigidas apenas no decorrer de seu desenvolvimento;
v Além disso, o protagonista tem como experiência típica a separação da casa paterna, a atuação de mentores de instituições educacionais, o encontro com a esfera da arte, aventuras eróticas (mesmo que apenas intelectualizadas), experiências em um campo profissional e eventualmente também contato com a vida publica, política.
Devido ao desajuste do herói em relação ao social e certo grau de subjetividade, por manter-se numa esfera intrínseca, individualizada, a narrativa de Bildungsroman é a afirmação de um compromisso com o social que, no final, acaba por vencer, deixando o protagonista, de certo modo, reconciliado com o mundo concreto. No decorrer da obra surge, perante o leitor, uma perspectiva narrativa distanciada, assinalando a disparidade entre os objetivos do protagonista e os resultados alcançados; O narrador, nesse contexto, assume uma atitude “elevada”, irônica, uma posição de quem sabe mais e vê mais longe, não permitindo ao leitor, por exemplo, equívocos acerca da imaturidade do protagonista.
O romance mantém um processo de ascensão através de olhar atento à ação formadora. No enredo, revela-se a dimensão do acaso que domina a vida da personagem em confronto com a firmeza de seus propósitos e a confiança que parecia dominá-lo desde princípio do percurso de sua aprendizagem. Assim, são selecionados diversos momentos dessa escalada (ou aprendizagem) do herói, de forma gradativa, para representar os degraus de sua trajetória (ascensão) e, com isso, maior discernimento para compreensão de si mesmo e do mundo.
Aprendizado, na medida em que o herói constrói, a partir de um telos (uma meta) interior, a sua própria personalidade e seus princípios, de ação moral. Formação na medida em que instituições sociais como a família, a escola, o teatro, a igreja, a loja maçônica, pelas quais transita o herói, procuram influenciá-lo, moldá-lo, direcioná-lo, segundo seus valores e normas especificas. (FREITAG, 1994 P.68)
Percebe-se que a formação em Bildungsroman implica numa transformação, processo esse continuo e sem fim. Segundo MAZZARI (1999), uma concepção clássica de formação apontada para o desenvolvimento das potencialidades do individuo para alcançar uma transformação harmônica. O conhecimento de si e do mundo, em uma sucessão de etapas, numa jornada educativa, direciona o herói em busca de uma realidade ética elevada (cf. MASS, 2000).
No desenvolvimento dessa jornada educativa, há, entretanto, um processo dicotômico: num primeiro momento o contato com a experiência, com os valores, a postura dos outros e, sequencialmente, certo isolamento, através do qual a personagem compreende as experiências vivenciadas. Sobre essa gradatividade, argumenta Botelho:
A “formação” da personagem desenvolve-se na medida em que aumentam sobre ela a influencia educativa exercida por outras personagens geralmente mais “experientes” que encontram no seu percurso, e na medida em que aumenta sua própria experiência de “interação” com o meio no qual ele se realiza. Trata-se, no conjunto, do desenvolvimento no individuo de algumas qualidades que sem a intervenção ativa de homens e acasos floresciam nele. O sentido da jornada educativa do herói é a sua reconciliação com a qualidade objetiva, o qual, por sua vez, torna-se possível quando o divorcio entre “subjetividade” e “objetividade” torna-se socialmente consciente (BOTELHO 1998: 24).
Assim, o protagonista, em seu desenvolvimento, passa pela compreensão do homem e do mundo em uma relação de solidariedade, na qual ele não esta circunscrito na interioridade, mas expande-se na interação e no interesse pela sociedade/comunidade.
Freitag (2000), ao se referir aos romances de formação, assinala que aprendizagem é a construção da personalidade e de princípios de ação moral do herói a partir de uma meta interior, sendo essa sustentada por uma visão reflexiva e critica da realidade.
Esse conceito sustenta-se pelo processo cultural através do qual está inserida a personagem em seu processo de construção de valores. Sua formação “reflexiona” a tentativa – por parte das instituições sociais como escola, família, religião, etc. – de influenciar, moldar, direcionar, lapidar o individuo segundo valores e normas específicas.
A representação do desenvolvimento - jornada educativa - orienta-se pelo equilíbrio da individualidade no enfrentamento com a sociedade (cf. Mass). A separação da casa paterna, a busca por novas experiências, o convívio social sem a intervenção social diretas são emblemáticos como representação do desenvolvimento da individualidade para a maioria dos romances deste gênero e dialogam com os elementos formativos presentes na concepção pedagógica iluminista.
No século XVIII, observam-se diversos pressupostos a serem preenchidos para que histórias de formação pudessem tornar-se tema de romance. Um deles é que o percurso individual, o lugar do indivíduo na sociedade e o sentido da vida não fossem predeterminados por um status conquistado pelo nascimento em determinada família ou por uma determinada posição ou crença religiosa. Só então o sujeito estaria aberto para desenvolver experiências orientadas para o mundo.
No século XVIII, desenvolveu-se uma nova representação do homem, que reconhece o direito à individualidade. Essa imagem surge em conjunção com a libertação das amarras sociais e religiosas. Como em todas as emancipações, esta trás consigo, com o crescimento da liberdade, problemas de orientação e inseguranças. Uma tentativa de captar a problemática que envolve esse novo individualismo é a concepção de um processo de formação em que cada um possa alcançar o equilíbrio com as experiências da vida (JAKOBS 1989:46).
Desenvolve-se assim, uma concepção de homem que reconhece o seu caráter individual e o seu direito à singularidade.
Algo pertinente a indagar nos dias de hoje a respeito de Bildungsroman é se essa forma específica de romance resistiu ao dias atuais ou, pelo contrário, se encontra exaurida, restrita ao espaço e tempo de sua gênese espaço-temporal. A inclusão cada vez maior ou menor de textos nesta tradição tem dependido da maior ou menor amplitude que se atribui ao conceito, desde ensaísta e historiadores que o restringem a um período determinado da cultura e língua alemãs, até outros que, utilizando de um contexto vernáculo, incluem nele momentos históricos diversos e circunstancias literárias e sócio-culturais distintas de sua gênese. Seguindo essa linha, poderíamos citar autores como Daniel Defoe, Thomas Mann, Herman Hesse, Saint-Exupèry, Gilbran Kahlil Gilbran. No Brasil, também possível encontrar ensaios, monografias, teses, enfim estudos de obras de autores consideradas com esse perfil, com Raul Pompéia, Monteiro Lobato, Guimarães Rosa, Jorge Amado, Josué Montello, etc.
Por fim, ocupando o singular terreno entre o desejo de totalidade e as múltiplas limitações em que a contemporaneidade se enreda, entre a possibilidade e um real concreto e outro alternativo, idealizado, construído através das limitações do indivíduo, seja na formação ou deformação de valores, Bildungsroman pode, apesar das adversidades, dar voz ao conflito de uma sociedade dividida entre os valores de um humanismo, que valorizava um saber crítico voltado para um maior conhecimento do homem, através de uma cultura capaz de desenvolver as potencialidades da condição humana e de preservar o indivíduo e as exigências de uma humanidade, desarticulada, em extenuante luta pela sobrevivência.

Bibliografia
AUERBACH, Erich. A cicatriz de Ulisses. In: ___. Mímesis. São Paulo: Perspectiva, 1987, p. 1-20.
BAKHTIN, Mikahil. O romance de educação na história do realismo. In: Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 223-276.
_____________. Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro, Forense - Universitária 1981.
_____________ Questões de Literatura e Estética (A Teoria do Romance). São Paulo, Hucitec, 1988.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BOTELHO, André. Através do Brasil: "Um romance de Formação" da Modernidade Brasileira.In: Ciência e Trópico. Recife, 1998.
CHAUÍ, Marilena. Cultura e Democracia: O discurso competente e outras falas. São Paulo, Moderna,1982.
FREITAG, Bárbara. O Indivíduo em Formação. São Paulo, Cortez, 2001.
GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa . São Paulo: Perspectiva, 1987.
GINZBURG, Carlo. O Velho e o Novo Mundo vistos de Utopia. In: _____. Nenhuma ilha é uma ilha: quatro visões da literatura inglesa. Trad. Sanuel Titan Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
GOETHE, Johann Wolfgang Von. Os Anos de aprendizado de Wilhelm Meister. São Paulo, Ensaio, 1994.
JAUSS, Hans R. A História da Literatura como Provocação Literária. São Paulo, Ática, 1994.
MAAS, Wilma Patrícia Marzari Dinardo. O Cânone mínimo. O Bildungsroman na história da literatura. São Paulo: Editora UNESP, 2000.
MAZZARI, Marcus Vinicius. Romance de Formação em Perspectiva Histórica: O Tambor de Lata de Gunter Grass. Cotia, Ateliê Ed., 1999.
[1] Aula proferida no programa de Pós-graduação em Estudos Literários, disciplina Literatura de Formação e Educação, pela Profa. Dra. Wilma Patrícia Marzari Dinardo Mass, no primeiro semestre de 2007.

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